compliancedireitoDireito civilEmpresasNiemann x Carlsen e a advocacia preventiva

16 de fevereiro de 2023por Sylvia Cristina0

Yuval Noah Harari, em sua tríade de obras literárias que o popularizaram a nível global, se debruça sobre o desenvolvimento da espécie humana, dedicando especial atenção à interação entre pessoa e tecnologia em suas obras “Homo Deus” e “21 lições para o século 21”.

Focado em explorar a (ir)relevância do ser humano frente ao avanço da tecnologia, Harari, no segundo capítulo deste último livro, se valeu de um exemplo pertinente ao campo do xadrez: programas de xadrez, como o Stockfish 8 e o AlphaZero, ficaram tão bons no jogo que os colaboradores humanos acabaram perdendo os holofotes e, em breve, poderão se tornar irrelevantes.

E, recentemente, uma polêmica se consubstanciou por meio da tecnologia: após uma partida de xadrez entre o Grande-Mestre Hans Niemann e o também Grande-Mestre, porém pentacampeão mundial, Sven Magnus Carlsen, uma severa campanha difamatória contra Niemann tem tomado corpo e destruído sua carreira – ao menos, é o que ele alega no processo milionário que ajuizou contra Carlsen, a plataforma de xadrez on-line Chess.com e o também Grande-Mestre Hikaru Nakamura.

Em 04 de setembro de 2022, Niemann, jogando com as peças pretas (portanto, em tese, em posição de desvantagem), venceu o “rei do xadrez” – quase imbatível – Magnus Carlsen, em uma partida presencial da prestigiada Sinquefield Cup (St. Louis – EUA).

No dia seguinte à partida, Carlsen, que estava invicto há 2 anos e 53 partidas, por meio de um tweet, anunciou que estava se retirando do torneio, anexando à sua manifestação um videoclipe no qual o técnico de futebol José Mourinho dizia: “I prefer really not to speak. If I speak, I am in big trouble”.

A partir disso, eclodiu uma série de tweets de amantes do jogo, enxadristas profissionais, jornalistas e até famosos, como Elon Musk, questionando se o “assunto intocável” trazido por Carlsen seria uma possível trapaça da parte de Niemann, buscando impulsionar sua carreira por meio de uma vitória contra Carlsen.

Diante da proporção que as teorias conspiratórias em seu desfavor rapidamente assumiram, Niemann publicizou ter sido removido da plataforma Chess.com e reconheceu ter trapaceado com o uso de dispositivos eletrônicos em partidas virtuais, mas apenas dos 12 aos 16 anos, e negou ter feito isso em partidas presenciais ou transmitidas por ele em plataformas de streaming.

A fim de justificar o banimento de Niemann, que havia sido feito de forma privada, a empresa Chess.com disponibilizou em seu website um relatório de 72 páginas referente a uma investigação realizada com o auxílio de softwares e que indicou que o jovem enxadrista trapaceou em mais de 100 partidas on-line até 2020, inclusive em torneios com premiação em dinheiro, o que teria ensejado sua remoção da plataforma.

Após o relatório se tornar público, Carlsen tweetou que não jogaria mais contra Niemann porque ele “trapaceou mais – e mais recentemente – do que ele reconheceu publicamente”, justificando que o progresso e a pontuação de seu adversário haviam escalado de forma inusual e, na sua percepção, Niemann sequer estava totalmente concentrado na partida presencial entre eles.

Ainda com o cenário do xadrez inflamado por essa polêmica, em 20 de outubro de 2022 Niemann protocolou a ação pleiteando mais de 100 milhões de dólares em indenizações, o equivalente a 521 milhões de reais, e disponibilizou o documento em sua integralidade, também por meio de um tweet.

No processo judicial, Niemann alega que Carlsen teria “arruinado” sua carreira com falas difamatórias, buscando colocá-lo na “lista negra” da profissão, pois os torneios patrocinados por empresas afiliadas a Carlsen estariam deixando de convidá-lo a jogar após as manifestações públicas do campeão mundial. Além disso, partidas que ele teria com jogadores famosos haveriam sido canceladas, e ele estaria com dificuldade em conseguir emprego como professor em escolas conceituadas, o que prejudicaria sua própria subsistência, já que o xadrez seria a sua única forma de sustento desde os seus 16 anos de idade.

Niemann relata, também, que a plataforma Chess.com teria o banido para dar suporte às palavras de Carlsen e Nakamura, parceiro da Chess.com e um streamer relevante no mundo do xadrez, teria postado horas de conteúdo visando amplificar as alegações de Carlsen.

Os pedidos de Niemann se fundamentam na Lei Sherman Antitruste, com a justificativa de que está ocorrendo interferência ilícita em contratos e expectativas de negócios e conspiração civil, pois, segundo o autor, Carlsen teria o difamado após perder a partida para manter sua fama de “rei do xadrez”, manter a lucratividade de sua marca-multimilionária e garantir que a venda de sua empresa (Play Magnus Group) à Chess.com, um negócio envolvendo cerca de 83 milhões de dólares, não restasse prejudicada.

Pelas cifras envolvendo a incorporação da Play Magnus Group pela Chess.com, vê-se que a polvorosa não se justifica somente pela discussão entre dois grandes nomes do mundo do xadrez e a ávida curiosidade humana, mas está circundada por interesses econômicos.

Em que pese o resultado da ação – se superada eventual arguição de incompetência de jurisdição – traga consigo, certamente, um impacto financeiro, seja pelo recebimento, por parte do Niemann, de uma vultuosa indenização, seja pela conclusão da fusão de duas empresas gigantescas do ramo do xadrez, a grande problemática se fundamenta em uma característica relevante a todas as pessoas, sejam físicas ou jurídicas: a reputação.

Se Carlsen fez uso de sua sólida reputação e de seu histórico enquanto enxadrista profissional para garantir os lucros da venda de sua empresa à maior plataforma de xadrez on-line do mundo e conter uma eventual ameaça à sua fama de “rei do xadrez”, o fez com esperteza, pois não disse, com todas as letras, ter deixado o torneio porque seu adversário trapaceou, apenas inseriu um vídeo com possível mensagem adjacente e de caráter subjetivo em seu anúncio de saída da competição, deixando que o apetite das pessoas por conflito fizesse o resto. E, certamente, o fato de Niemann ter assumido publicamente que trapaceou em partidas virtuais quando mais jovem o ajudou em seu intento.

Dessa forma, para que Niemann vença a ação não bastará provar que Carlsen faltou com a verdade ao dizer que ele “trapaceou mais e mais recentemente” do que o assumido publicamente, mas deverá demonstrar que o campeão mundial agiu com verdadeira malícia, muitas vezes compreendida no direito americano como desprezo à potencial falsidade de um dado ou informação e às consequências de seu repasse.

Os danos que vêm atingindo Niemann, por sua vez, são inegáveis – basta ler alguns comentários depreciativos dirigidos a ele em suas redes sociais. Poderiam, contudo, serem diminutos caso o promissor enxadrista tivesse buscado consultoria jurídica antes de publicizar sua expulsão da plataforma do Chess.com e de reconhecer ter trapaceado em partidas virtuais quando mais jovem, fornecendo mais munição aos seus opositores.

O jovem jogador enxergou o Direito da forma que as pessoas usualmente o veem: como instrumento de litígio, de reparação, como uma tentativa de “consertar o que foi quebrado”. A garantia de direitos, porém, possui uma bela faceta ainda pouco reforçada no imaginário popular: o viés preventivo.

Se Hans Niemann tivesse agido com prudência e tomado medidas jurídicas preventivas, sua reputação poderia não ter permanecido intocada, mas poderia, muito provavelmente, ter “apanhado menos”. E, enquanto as pessoas preferirem gastar com litígio em vez de investir em prevenção, bolsos continuarão se esvaziando e reputações continuarão sendo destruídas.

Uma coisa, porém, é certa: enquanto a humanidade povoar o mundo, o ser humano sempre mostrará interesse pela vida alheia e seus conflitos. E isso algoritmo algum poderá cessar ou substituir.

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